Olhemos um pouco para a história. Até a década de 1870, a pequena cidade de São Paulo não tinha um sistema de água encanada. A obtenção de água era feita nas próprias margens dos rios, ou em chafarizes, onde os moradores precisavam se dirigir para pegar água. O fluxo era controlado por reduzidos reservatórios, um deles ficava no Bixiga, nas imediações do Ribeirão Saracura, o chamado Tanque do Reúno.
A expansão do sistema de abastecimento dependia de investimentos e trabalhos de engenharia. Portanto, nunca houve, naturalmente, água em torneira nem disponibilidade hídrica para captação na cidade. As águas das várzeas, apesar de abundantes, eram estanques e poluídas.
Em 1877, foi organizada a Cia Cantareira, a primeira empresa de abastecimento e saneamento que deveria atender a demanda de abastecimento. A empresa construiu uma pequena rede incluindo um reservatório na hoje famosa região da Cantareira (foto). De tão pequena, essa represa é usada atualmente como pesque-pague. A Cia Cantareira quebrou e teve o contrato rompido porque não conseguia expandir o sistema (não muito diferente do que vivemos hoje). Vieram várias empresas depois; RAE, DAE, SAEC e, finalmente, a Sabesp – que não deverá ser, provavelmente, o último estágio dessa sucessão.
O abastecimento de água em SP sempre dependeu de processos artificiais de captação: planejamento e investimento. Se dependêssemos de ajuda divina nem o pequeno Tanque do Reúno teríamos hoje. Os reservatórios devem acompanhar a demanda (o crescimento da cidade) e se tornarem cada vez maiores. Já como a disponibilidade geográfica é sempre limitada, a água precisa ser obtida cada vez mais longe. Primeiro o Bixiga, depois a Cantareira, depois Santo Amaro, depois o Alto Tietê. A existência de anos secos (ou uma sequência deles) não é só natural como previsível. E o sistema deve estar dimensionado para isso.
O problema que enfrentamos hoje não é pela falta de chuva, é pela falta de planejamento e investimento do Governo e da empresa encarregada, que preferiu maximizar os lucros de seus acionistas em vez de atender a população. Em suma, se olharmos para a história veremos que a crise hídrica é, na verdade, uma crise política.
Texto Original de Gabriel Kogan, em A falta de chuva não é a causa da crise no abastecimento em SP
Gabriel Kogan é arquiteto e jornalista, formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; desenvolveu mestrado em Gerenciamento Hídrico no UNESCO-IHE (Holanda), onde pesquisou as origens históricas das enchentes em São Paulo.